Viviane de Freitas Cunha[1]
Resenha: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões; tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2010. 291 p.
A obra Vigiar e Punir, do francês Michel Foucault, está contextualizada na fase Genealógica pela qual o autor passou, portanto, ela busca, de alguma maneira, responder à questão: Como nos tornamos aquilo que somos, enquanto sujeitos do poder? E, principalmente, se o que temos, hoje, referente ao sistema carcerário, é resultado de um único processo ou se teve rupturas e retomadas ao longo do tempo.
Graduado em Filosofia e Psicologia, Foucault é conhecido por escrever sobre temas como a loucura (A história da loucura, 1961), visto que atuou em hospitais psiquiátricos; a medicina (Nascimento da clínica, 1963) e; neste caso, a prisão. Mais especificamente, escreveu sobre as práticas institucionais agindo sobre os indivíduos e os efeitos dessas ações.
A obra divide-se em quatro partes – Suplício, punição, disciplina e prisão. Esses títulos permitem que imaginemos uma linha temporal, embora o autor faça retomadas a todo o momento, é fato que ele inicia abordando os suplícios do século XVIII, passa pelos primeiros modelos de prisão – no século XIX – e finaliza com a prisão como a conhecemos hoje. O livro, em toda a sua extensão, prima pela riqueza das fontes, pelos referencias que o autor traz, a fim de mostrar a base de seus escritos. Temos, ao longo do livro, trechos de arquivos parlamentares, municipais, relatórios, jornais, etc. Temos também a fala de estudiosos como a dos reformadores Cesare Beccaria (pelo Direito Penal), Jean-Baptiste de La Salle (pela educação) e Jeremy Bentham (pelo pan-optismo ou observação).
Passemos à primeira parte: As primeiras páginas do livro podem chocar pelo tanto de detalhes que apresentam ao narrar o suplício de um parricida condenado. No entanto, é exatamente o detalhe que nos permite perceber a passagem de espetáculo para segredo na execução das penas. O corpo era punido de maneira a dar exemplo, a instruir os espectadores, e através de todo o teatro que era o suplício, acreditava-se que os demais indivíduos que compunham a sociedade não cometeriam crimes ou delitos. O objetivo-mor do suplício era, portanto, mostrar que haveria realmente um castigo contra aquele que se levantasse contra o soberano, já que a lei representava sua vontade.
Às vezes, o papel acabava invertido; aos olhos da população, o criminoso passava a ser o carrasco ou o juiz, ao passo que o condenado passava a objeto de piedade. Essa ocorrência se deve ao fato de que um assassino podia ser condenado pelo crime, mas a justiça punia com o próprio ato que julgava criminoso e, além disso, fazia da morte um show de horrores. Dado que se buscava atingir o corpo, o que se buscava era o suprassumo da dor.
De acordo com o autor, os juristas do século XVIII acreditavam que a pena devia ser mesmo severa para que ficasse “profundamente inscrita no coração dos homens” (p. 49), assim, garantir-se-ia o funcionamento político da sociedade. Por outro lado, para os reformadores, essas execuções públicas não assustavam o povo, era necessário suspendê-las. Mas não foi tanto pela crueldade que os reformadores criticavam o sistema penal da época, mas pela má economia do poder, ou seja, havia excesso de poder do rei, dos juizes, dos acusadores, etc.
Nesse ponto, passamos à segunda parte do livro: na segunda metade do século XVIII o suplício passou a ser visto como revoltante para o povo e vergonhoso para a vítima. Ele, então, desaparece sob argumento de que a população, acostumada a tanto sangue, não saberia outra maneira de sentir-se compensada ou vingada a não ser através de sangue. Além disso, o direito de punir é identificado com o poder pessoal do soberano e é isso que os reformadores atacam, buscam estratégias de redistribuição do poder de punir.
Ainda no século XVIII, o autor destaca a mudança da criminalidade de sangue para a criminalidade de fraude. Essa passagem ocorre devido a maior valorização jurídica e moral da propriedade. Ora, já não são mais os direitos a serem atacados, mas os bens. Já não há mais a vingança do soberano, mas a defesa da sociedade. Vemos, nesse ponto, a clara mudança: o sistema penal mudou porque os crimes mudaram e já não há motivos para punir o corpo, o que se deve punir é o efeito causado, pelo crime, sobre a ordem social.
O autor apresenta-nos as quatro principais penas do Código Penal de 1810: trabalhos forçados, detenção, reclusão e encarceramento correcional. Isto Foucault julga ser o problema: Todas essas penas são praticamente a mesma, sob nomes diferentes! Logo, se o encarceramento ocupa grande parte dos campos de punição, não causará estranhamento o fato de que será necessário um espaço físico suficiente para “acomodar” os condenados. Assim, surgirá a arquitetura-prisão. No entanto, antes de abordar os aspectos da prisão propriamente dita, o autor traz, na terceira parte da obra, a disciplina como fabricadora de corpos dóceis e úteis. Conforme Foucault (2010)
Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. Diferentes da escravidão, pois se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos (p. 133)
Primeiramente, ele chama a atenção para o espaço físico ocupado nas prisões: a individualização – fruto do quadriculamento –, modelo também das salas de aula das escolas cristãs, dos hospitais. O importante era isolar os indivíduos, a fim de que fosse possível controlar de cada um. Ou seja, cada aluno, doente ou condenado devia estar sempre no seu devido lugar, para isso, era constantemente vigiado. Se a disciplina tem como consequência a sujeição e a utilização do indivíduo, então ela é eficaz, segundo essa economia do poder.
Além do isolamento, a observação é outro aspecto apontado por Foucault. A esse respeito, o autor traz o modelo arquitetural de Bentham: estrutura circular ou semi-circular, capaz de permitir que um vigiar veja todos os que ali se encontram, sem que seja visto. Assim, de acordo com o autor com o jurista inglês, a ordem estaria garantida.
A quarta parte da obra, intitulada prisão, tem, logo no início, a seguinte questão capciosa: “Como não seria a prisão imediatamente aceita, pois se só o que ela faz, ao encarcerar, ao retreinar, ao tornar dócil, é reproduzir [...] todos os mecanismos que encontramos no corpo social?” (p. 219). A questão já foi respondida por Foucault nas partes anteriores do livro, pois, grosso modo, a prisão é uma imitação da escola, do quartel, do convento e da oficina.
Ferrus apud Foucault (2010) aponta para três tipos de condenados: os intelectuais-perversos; os limitados e os incapazes. Nasce, então, um novo saber e nele só importa “qualificar cientificamente o ato enquanto delito e principalmente o indivíduo enquanto delinqüente” (p. 241), ou seja, tornou-se necessário explicar racionalmente o crime, por isso, a busca por antecedentes, problemas mentais. Criminalidade e delinqüência entram, finalmente, em confronto.
A obra de Foucault é importante para elucidar o que quer que tenhamos alguma vez entendido por Direito Penal e por sistemas carcerários dos séculos que nos precederam, uma vez que traz vários modelos de prisões. A obra é também historiográfica: remonta os métodos que os poderes das instituições foram adotando para punir os criminosos até os tempos atuais.
Quando a sociedade muda, os crimes também mudam e isso faz acontecer mudanças nas formas de punir. Pode que sejam elas violentas em relação ao corpo, à alma ou se acreditam que a instrução colabora para a recuperação do “delinquente” e que pode haver reintegração deste indivíduo na sociedade.
Além de ser relevante para a área do Direito Penal, a obra foucaultiana também interessa para todo o âmbito escolar, sendo de extrema utilidade para os estudiosos da Pedagogia e das Licenciaturas. Assim, pode ser que entendamos quando as portas dos banheiros de nossas escolas forem meias-portas, e, enquanto alunos, formos dispostos em fileiras; perceber-nos-emos alvo da observação e fruto da disciplina.
Por vezes, não é possível identificar, na obra, se Foucault está descrevendo a escola, o quartel o hospital ou a prisão, porque o modelo disciplinatório, se não é igual atualmente, no passado o foi, porque sentimos, ao ler, muitas semelhanças, dado que o sistema de Direito Penal moderno já não pune, segundo Foucault, o que ele faz – ou pretende fazer – é readaptar delinquentes. Se é, agora, mais humana, o que almeja é contrastar com o passado desumano, dos cadafalsos, ou melhor, almeja julgar as consciências passadas, a fim de apontar-lhe erros.
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