As seguintes questões foram respondidas a partir da seguinte referência:
SANTOS, B. de S. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, v. 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Cap. 2 - Para uma concepção pós-moderna de direito. São Paulo, Cortez ed., 2000.
1) Fale sobre as relações entre ordem, emancipação e regulação na concepção de Boaventura de Sousa Santos.
A relação entre emancipação e regulação se dá através de uma tensão, a qual remonta à recepção do direito romano na Europa do século XX, uma vez que grande parte dos historiadores o considera o fator mais importante da criação da tradição jurídica moderna ocidental. A relação desta tensão com a ordem se dá, a partir do momento em que o capitalismo exige que o direito assegure a ordem.
Com a tensão entre emancipação e regulação veio a ideia da boa ordem. Em desaparecendo essa tensão, a boa ordem deu lugar à ordem tout court, que, no meu entendimento, desligou ordem e solidariedade, e o direito passou a agir para assegurar uma ordem que é exigida pelo capitalismo (ou capitalistas).
A sociedade feudal se encontrava em uma situação extrema de pluralismo jurídico e a recepção do direito romano convinha aos projetos emancipatórios da classe nascente (burguesia), que já desenvolvia uma forma de regulação jurídica que reforçava os seus interesses em uma sociedade que ela não dominava nem política, nem ideologicamente.
Pode-se dizer, portanto, que a tensão entre emancipação e regulação se constitui com a recepção do direito romano. Ao novo projeto regulador (que está ao serviço dos interesses progressistas da classe social) cabe desenvolver um projeto cultural e político de emancipação social. Dessa forma,
A tensão entre regulação e emancipação reside no fato de a legitimidade do poder regulador derivar da sua autonomia relativamente aos fatores fáticos envolvidos nos conflitos cuja resolução exige regulação. (Souza, 2000, p. 123)
Para Santos, a tensão se desfaz quando a emancipação é absorvida pela regulação. Isso ocorre porque, segundo o autor, as características do direito romano (que eram responsáveis pela tensão) se transformam, assim como as condições específicas da época. A isto, Santos chama de “canibalização da emancipação social por parte da regulação social”.
Se a tensão da qual estamos falando era parte do projeto histórico da nova burguesia europeia na luta pela conquista econômica, cultural e política, uma vez conquistados esses objetivos, a tensão perde a utilidade histórica e é eliminada. Conforme Santos (2000):
A trajetória histórica da experiência humana demonstra que ela se move do certum para o verum, da autoridade para a razão, do particular para o universal. É o direito que melhor revela essa trajetória: em todos os momentos da história, o direito é constituído por uma tensão entre regulação (autoridade) e emancipação (razão), mas, com o desenrolar da experiência humana, a emancipação triunfa sobre a regulação. (p. 128)
Quando o capitalismo passa a dominar, a cientificização do direito (criticada por Santos como erudição inútil e esoterismo impenetrável) permitida pelo direito romano demonstra como, num período de hegemonia positivista, a regulação social se torna científica para ser maximizada e para maximizar o esquecimento da ética social e política que, desde o século XII, mantinha viva as energias emancipatórias do novo horizonte jurídico (luta pela conquista do poder econômico e cultural e, enfim, político).
2) Qual o papel do Direito no capitalismo? Como se constrói a modernidade político-jurídica?
Ao direito moderno cabia a tarefa de assegurar a ordem, mas uma ordem exigida pelo capitalismo, o que soa incoerente, uma vez que o caos social havia sido obra do próprio capitalismo enquanto se desenvolvia. Se a modernidade teve com fruto a cientificização da sociedade, o direito moderno, para cumprir essa função (de assegurar a ordem), teve que se submeter “à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna e tornar-se científico ele próprio”.
Santos inicia falando sobre o primeiro período do capitalismo, o capitalismo liberal. Conforme o autor, o cientificismo e o estatismo são as principais características do direito racional moderno. A dominação jurídica racional é legitimada pelo sistema racional de leis, universais e abstratas, emanadas do Estado, que presidem a uma administração burocratizada e profissional, e que são aplicadas a toda sociedade por um tipo de justiça baseado numa racionalidade lógico-formal.
O direito formal racional proporcionou a vontade do “Estado como pessoa” e do “Estado como máquina”. Tal como o direito foi reduzido ao Estado, o Estado foi reduzido ao direito. No entanto, esses processos não foram simétricos, pois, o direito perdeu poder e autonomia no mesmo processo político que os concedeu ao Estado. A medida que o direito foi se tornando estatal, foi se tornando científico. À medida que o direito foi politizado, enquanto direito estatal, foi também cientifizado, contribuindo, assim, para despolitizar o próprio Estado: a dominação política passou a legitimar-se enquanto dominação técnico-jurídica.
Sobre o segundo período do capitalismo, o capitalismo organizado, Santos (2000) afirma que “o campo jurídico, este período foi caracterizado por uma hipertrofia inédita da utopia automática de engenharia social através do direito, em nome da qual se redefiniram o cientificismo e o estatismo do direito”. (p. 145)
À medida que o Estado se envolveu na gestão de processos econômicos e sociais, o direito do estado tornou-se menos formalista e menos abstrato; houve a “materialização” do direito (mais formal, menos abstrato) e a “politização” do direito. Assim, o direito do Estado conseguiu dar credibilidade à utopia enunciada no primeiro período. Essa utopia jurídica acabou por simbolizar um novo conceito de caos e, na mesma proporção, um novo conceito de ordem.
Como afirma Santos, “[...] à medida que o direito se entranhava nas práticas sociais que pretendia regular ou constituir, distanciava-se do Estado: ao lado da utilização do Estado surgiu a possibilidade de o direito ser usado em contextos não-estatais e até contra o estado.” (p. 151). No entanto, visto de outro ângulo, o direito tornou-se mais estatal ainda, dado que essa juridicização da prática integrou categorias jurídico estatais relativamente homogêneos, nos mais diversos e heterogêneos domínios sociais. E o direito foi “despromovido da categoria de princípio legitimador do Estado para um instrumento de legitimação do estado”. Assim, começa a banalização do direito.
O terceiro período do capitalismo é caracterizado pelo desenvolvimento desorganizado. Com a juridicização do mundo social, acorrem disfunções que se revelam no campo jurídico. A regulação jurídica destrói a dinâmica orgânica e os padrões internos de autoprodução e auto-reprodução das diferentes esferas sociais. E são essas disfunções que redundam na ineficácia do direito.
O que a crise do direito regulatório revela é que, quando posto ao serviço das exigências regulatórias do Estado constitucional e do capitalismo hegemônico, o direito moderno (reduzido a direito estatal científico) foi gradualmente eliminando a tensão entre regulação e emancipação que lhe havia constituído.
3) De acordo com Boaventura quais as áreas em que é mais importante “des-pensar” o Direito e porque?
Santos adverte que o termo “des-pensar” é um neologismo que ele utiliza para “significar o processo analítico pelo qual o direito é submetido a um questionamento radical que envolve, sobretudo, o autoconhecimento produzido pelos juristas, o chamado pensamento jurídico e a ‘dogmática jurídica’”. Para o autor, o des-pensar o direito situa-se em três áreas tidas como as mais importantes:
“Estado nacional versus sistema mundial, Estado-sociedade civil versus sociedade política, e utopia jurídica versus pragmatismo utópico. Estes três tópicos foram apresentados como dilemas porque, de fato, foram percebidos como tal no início do século XIX. O Estado constitucional considerava-se dotado de um poderoso recurso (um sistema jurídico exclusivo, unificado e universal) para enfrentar esses dilemas eficazmente, isto é, de tal maneira que se assegurasse a auto-reprodução do próprio Estado. O primeiro dilema foi confrontado pelo dualismo direito nacional/direito internacional, o segundo dilema foi confrontado pelo dualismo direito privado/direito público, e oterceiro dilema foi confrontado por um padrão de transformação normal baseado na infinita disponibilidade ou manuseabilidade do direito (SANTOS, 2000, p. 187).
Ligado a isso, o autor acrescenta as deficiências estruturais destas três construções jurídicas, nas quais, a primeira ressaltava que em função do sistema inter-estatal, o direito internacional seria intrinsecamente de “qualidade jurídica” inferior à do direito nacional. A segunda deficiência alertava para o fato de que o direito privado era tão público como o direito público e que, portanto, um coincidia com o outro, anulando o dualismo. E a terceira construção jurídica esquecia o fato de que o direito, depois de separado da revolução, podia “normalizar” qualquer tipo de transformação numa qualquer direção possível (incluindo a estagnação ou a decadência social).
Na tentativa de repensar o direito, sem estes dilemas e sem estes impasses intelectuais e políticos a que eles conduziram, o autor vai em busca memórias alternativas para o futuro. Assim:
Relativamente ao primeiro dilema, encontrei-as na cultura jurídica multisecular, transnacional e local, da modernidade; relativamente ao segundo, encontrei-as em tradições conceptuais alternativas de Estado, especialmente no conceito de Estado da república renascentista, que o entendia como obem-estar geral de uma sociedade autogovernada (optimus status reipublicae); por último [...], descobri as memórias alternativas do futuro na articulação entre direito e revolução, uma longa tradição histórica da modernidade abruptamente interrompida depois da Revolução Francesa. Estas escavações foram apenas o começo do processo de des-pensar o direito (SANTOS, 2005, p. 187).
Como propôs Santos (2000), o objetivo é “des-pensar” o direito de forma dicotomizada, ou seja, dividido sobre os conceito direito público/privado, nacional/mundial, sociedade civil/Estado. O direito seria des-pensado e, então, repensado e essa nova maneira de pensar o direito poderia implicar na mudança da consciência de que o direito serve para regular todas as relações sociais e “esse processo pode culminar na eliminação da dicotomia fundamental: regulação-emancipação”.
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