"Hoje eu sei, África rouba-nos o ser, e nos vaza de maneira inversa, enchendo-nos de alma."
Mia Couto
INTRODUÇÃO
A partir da leitura do conto Estória da galinha e do ovo de José Luandino, pretende-se mostrar como a literatura angolana/colonizada foi se consolidando de maneira a criar uma identidade própria a partir da busca das diferenças com a literatura portuguesa/colonizadora. Para entender melhor esse processo de pelo qual passou a literatura de Angola, foi utilizado, como base, o texto O passado Presente na Literatura Angolana, de Rita Chaves.
Para que ficasse marcada a diferença entre a literatura do colonizador, que imperava, e a literatura angolana, fizeram-se necessárias as marcas da cultura angolana, ou melhor, a recuperação dessas marcas. Por isso tem-se, na obra de Luandino, a tradição oral. Preocupado em inserir a oralidade na escrita, sua escrita apresenta rupturas com o português padrão, que é quebrado em diálogos.
O livro Luuanda não é escrito apenas em português. Temos, seguidamente, a presença de palavras ou expressões do quimbundo, ou decorrentes da mistura do português com as línguas africanas faladas em Angola. Dessa forma, Luandino rompe com o “padrão” abarcarcando a realidade cultural e linguística do ambiente retratado de modo que tenha não somente o padrão e não somente o coloquial, mas a união dos dois.
Luandino insere a oralidade em seus contos também por meio de um trabalho com a língua, principalmente através do uso de palavras de línguas africanas misturadas ao texto escrito em português e de estruturas sintáticas da fala de Luanda, demonstrando um cuidado com a linguagem que traz para a escrita a voz dos personagens, exigindo daquele que lê uma aproximação maior com esse universo oral e o reconhecimento da diferença.
A ESTÓRIA DA GALINHA E DO OVO:
Enunciado: Uma galinha bota um ovo no quintal da vizinha de sua proprietária, dando início a uma briga para se saber de quem é o ovo. E para que a solução seja encontrada de maneira justa, o narrador colocará a questão sob diversos pontos de vista, permitindo que cada personagem coloque sua verdade.
O narrador começa sua história apresentando as circunstâncias em que se deram os acontecimentos, ligando-a a uma realidade: “Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda.”, “Foi na hora das quatro horas”, o que caracteriza a narrativa oral. Temos ainda, o valor dos mais velhos, portadores de uma experiência maior. Babeca será a autoridade que, no final do conto, dará a opinião que prevalecerá. Mesmo sendo a única que impõe respeito entre as partes da discussão, Babeca não se impõe como portadora da verdade, sob explicação de que “a cobra enrolou no muringue! Se pego o muringue, cobra morde; se mato a cobra, o muringue parte!”, e se dispõe a ouvir as duas mulheres envolvidas, e também toda a comunidade, que representa quase todas as partes da sociedade da época, em Angola, com saberes diferentes.
Assim, começam a aparecer os personagens do conto, que são também representações da população daquela época. O Primeiro a aparecer foi sô Zé “ele é branco!” Mas ele tenta puxar para si o ovo. Decepcionada com sô Zé, que mesmo sendo branco não soube resolver o caso, Babeca passa a valorizar a sabedoria acadêmica de Azulinho “na hora de falar sério, tanto faz é latim, tanto faz é matemática, tanto faz é religião, ninguém que duvidava”. Mas o menino também quis levar vantagem e todo seu conhecimento de nada adiantou para acabar com a discussão.
Já que nem o conhecimento do branco, nem o do acadêmico resolveram, tentou-se resolver por meio do conhecimento comercial, através de sô Vitalino, comerciante que possuía barracos no musseque. Mas, aconteceu com os outros, sô Vitalino quis o ovo para ele, pois o quintal em que o ovo estava lhe pertencia. É importante ressaltar que, com esse homem, apenas Bebeca pôde relatar a história: “só mesmo vavó é que podia pôr conversa de igual”.
Descrente nas razões dos brancos, dos estudiosos e dos comerciantes, só restava o conhecimento jurídico. Mas sô Lemos, assim como todos os outros, tenta conseguir o ovo e também o dinheiro das mulheres, afinal, nenhuma delas possui nota fiscal nem da galinha, nem do milho, e assim, eles não lhes pertenciam. “– Diz a senhora que a galinha é sua? [...]– Tem título de propriedade?” Mas para Zefa, o que interessa é o reconhecimento da comunidade de que a galinha era dela, independente de registros ou papéis, explicitando a diferença entre a oralidade e a escrita.
Sem uma solução, as duas vizinhas recomeçam a brigar, até que chega a polícia. O último conhecimento que faltava. E com esse conhecimento nem velha Bebeca se sentia à vontade. Para eles, o conhecimento da mais velha não interessava. Interessava-lhes apenas seu conhecimento: a discussão sobre sargento ser ou não um soldado demonstra isso muito claramente “– Soldado uma merda! Sargento!” Além disso, o conhecimento que reconheciam não poderiam vir de uma mulher, deveria vir dos homens, “onde estão seus homens?” que, no entanto, como já foi dito no início, não tinham resolvido nada. E por não haver homens do musseque para resolverem a situação, os policiais também tentaram levar vantagem: “com essa mania de julgarem os vossos casos, tentaram subtrair a justiça aos tribunais competentes! A galinha vai comigo apreendida”.
Mas todo o discurso autoritário de poder dos soldados é subvertido, não pela autoridade da velha Bebeca, que para eles não tinha autoridade nenhuma, mas pela natureza e pela esperteza das crianças, os filhos de Zefa, que estavam o tempo todo acompanhando a história e que se preocupavam mais com a galinha do que com a discussão. E são as crianças que conseguirão resolver a questão, por meio da experiência, de um conhecimento que aprenderam de um outro mais velho, vavô Petelu, a saber, “falar a língua dos animais”. Assim, Beto imitando o galo, faz Cabirí afastar-se pra bem longe dali “– Foi o Beto! Parecia era galo. Aposto a Cabíri já está na capoeira…”
Sorrindo, Vavó Bebeca entregou o ovo para Bina, pedindo permissão a Zefa. “Envergonhada ainda, a mãe de Beto não queria soltar o riso que rebentava na cara dela. Para disfarçar começou dizer só:
– É, sim, vavó! É a gravidez. Essas fomes, eu sei… E depois o mona na barriga reclama!”
Esses trechos, além de mostrarem a importância da experiência passada de geração a geração (do avô aos meninos) – se não fosse esse conhecimento, os policiais teriam levado a galinha –, ressaltam o reconhecimento da autoridade e sabedoria de Bebeca, acima de todas as interferências de agentes externos à comunidade. A tradição é que prevaleceu para solucionar a discussão. Outra aproximação da oralidade está no fins do conto, que se dá como em contos orais:
“Minha estória.
Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda.”
Como uma característica do texto oral, que é a base do texto africano, não existe um padrão de encerramento para o conto, mas os elementos são os mesmos: trazer novamente o ouvinte para o ambiente da performance a partir do pedido de que julguem a beleza da história, o recurso de novamente afirmar que os fatos aconteceram e que não se trata de mentira, mas sim do relato de uma experiência.
A (RE)VALORIZAÇÃO DO PASSADO
A recuperação do passado foi um processo que se deu através da reinvenção. Foi necessário desvendar a natureza do colonialismo, trazendo a tona o problema da inferiorização do dominado para que se pudesse contrariar as desigualdades que o colonialismo perpetuava, já que a submissão acabaria conduzindo o colonizado à total desvalorização de seu patrimônio cultural.
Mas como fazer para criar uma identidade na escrita se a África praticamente se fazia da oralidade? Passar para o papel uma cultura que é pra ser falada, contada é matar o texto com a arma do inimigo. Em vez disso, o que se buscou foi pôr dentro do texto escrito tantas marcas quanto fosse possível do texto falado. Foi porque a literatura portuguesa se deu de maneira tão padrão na escrita que se pôde notar a diferença na escrita africana.
A dificuldade parece estar no fato de que recuperar todo o passado seria inviável, e livrar todo o pensamento da “contaminação” colonizadora também. O que se poderia fazer é recuperar, reinventar a identidade deformada pelo pensamento colonial, distanciando-se da cultura do colonizador, que estava tomando o espaço da sua. Funcionaria como um modo de resistência a um pensamento hegemônico e opressor. Seu mundo já é outro, já é híbrido, mas ainda assim ele precisa conquistar seu espaço.
CONCLUSÃO
Da mesma forma que os escritores moçambicanos, os angolanos usaram a língua do opressor para agir contra ele. A literatura angolana é quase toda escrita em português, no entanto, no campo semântico e lexical registram-se construções que aproximam a língua da fala popular, demonstrando que não há mais submissão à gramática da ordem. A língua passa a não ser mais a que os colonizadores trouxeram.
A literatura, sendo o instrumento de afirmação da nacionalidade, será também o meio de se conhecer o país através das histórias contadas. A motivação para a acelerada criação de uma literatura nacional partiu do contexto da desigualdade de forças e poderes.
Ainda que o processo de alienação aplicado pelo colonizador chegasse a ponto de impor a conhecimentos impalpáveis sobre Portugal nas escolas angolanas, de forma que o espaço africano ficasse apagado, isso não implica em dizer que a tradição estivesse totalmente destruída, mas adormecida, precisava ser acordada, precisava de força.
E foi assim que se deram as coisas; o contexto de desigualdades de forças e poderes motiva a criação urgente de uma literatura nacional, que se diferencie da feição colonialista. Para tanto, a tradição foi trazida a tona de forma a recuperar tudo o que fosse possível da cultura angolana soterrada pelo quadro da visão imperialista.
CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê, 2005.
SAMPAIO, N. A. F. Por uma poética da voz africana: transculturações em romances e contos africanos e cantos afro-brasileiros. Mestrado em Letras, 2008.
VIEIRA, José Luandino. Luuanda. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio. Os seus amores, 2004
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