31 de agosto de 2010

A moderna poesia moçambicana

Análise de algumas poesias de José Craveirinha
A poesia foi sempre para mim um
 instrumento de reivindicação.
Os meus poemas têm sempre
uma dimensão social, sociopolítica.
Mesmo quando falo de coisas como flores...
É também um refúgio para minhas dores pessoais.
José Craveirinha

Para idear essa análise, fiz uma breve pesquisa sobre a biografia do autor, bem como das características de algumas de suas obras a fim de, então, formar um pensamento próprio a respeito do que eu havia entendido pela literatura do moçambicano José Craveirinha.
A seguir, a análise (mais pessoal que formal) dos poemas Karingana ua karingana, 3 dimensões, Suelto e Ninguém. Reforçando ainda o fato de que a maioria dos apontamentos foram feitos por mim enquanto leitora amadora da poesia de Craveirinha.

KARINGANA UA KARINGANA.
Este jeito
de contar as coisas
à maneira simples das profecias
— Karingana ua karingana
é que faz a arte sentir
o pássaro da poesia.

E nem
de outra forma se inventa
o que é dos poetas
nem se transforma
a visão do impossível
em sonho do que pode ser.
— Karingana!

Começando pelos três primeiros versos, pode-se pensar que se trata do prenúncio de uma história, talvez a história da África (e penso isso pela utilização das palavras em Ronga. Mas, quando nos versos 6 e 7, o poeta diz que esse jeito de contar é que faz a arte sentir o pássaro da poesia, pude mudar o pensamento. Ainda acredito que seja uma história, mas um conto quem sabe, algo inventado, mas poético.
A visão do impossível que se transforma no sonho do que pode ser me remete aos contos populares, e essa idéia se reforça quando no verso 4 o travessão marca a oralidade: “— Karingana ua karingana”. Isso se enquadraria muito bem, visto que os contos populares (ou fábulas) são narrativas transmitidas oralmente, e onde se tem de enfrentar grandes obstáculos antes de triunfar contra o mal. Esses obstáculos poderiam ser os colonizadores portugueses, talvez por isto, o autor tenha posto o principal da poesia en ronga. Sendo o termo de procedência oral, o autor estaria afirmando sua identidade. Pois o jeito de “contar” é a marca dos africanos, sua tradição. Assim como um pássaro, a voz é livre, voa, não se detém. O texto escrito é marca do colonizador, embora Craveirinha tenha que utilizar o texto escrito para afirmar essa identidade.
Como conclusão, tenho que o título seja a introdução a uma história, equivalente ao nosso “Era uma vez”. Porém, em vez de conto acabado, o sonhado “viver felizes para sempre” se daria na beleza da poesia, onde o herói é o poeta (que inventa). É isso que deve o poeta fazer; reinventar a vida através da sua poesia, ir além das palavras que ficam presas no papel.
Nesse poema, o aspecto social me parece gritante. Craveirinha faz uma relação (na verdade, um confronto) entre o “maquinista” do trem que passa na estrada de ferro, o “maquinador” que arquiteta da estrada de ferro e “a máquina”, ou seja, o que constrói a via férrea. Por esse motivo, vou me ater mais à estrutura deste poema.
O que pude notar, assim que o li pela primeira vez, foi, antes de tudo, o aspecto social, como já mencionei, mas notei quase que instantaneamente, ao terminar a leitura, que o poema tinha o aspecto social diretamente ligado à sua estrutura, isto é, não começava com o homem do ramal e sim com o da cabina, porque o deus da zorra está sempre abaixo do deus da máquina e do deus da primeira classe.
Sendo assim, fica ainda mais claro que o poeta não quis deixar latente o aspecto negativo da colonização, onde quem está em cima é o estrangeiro. Mas ainda parece ficar implícita uma crítica de Craveirinha; a de que sem o homem do ramal (a máquina), de nada adiantaria um maquinista e um maquinador.
Concordo com a escolha do poeta quando ele intitula esse poema de 3 dimensões. E são mesmo; porém são, infelizmente, três dimensões em um mesmo mundo, mais especificamente, em um mesmo país.

O terceiro poema a ser analisado é Suelto. Neste poema, Craveirinha contrapõe ciência e religião, isto é, menciona dois lugares; o laboratório e a igreja. Esses “sueltos” (suelto quer dizer tópico ou pequeno comentário) parecem dar duas notícias como se ambas ocorressem ao mesmo tempo.
O autor menciona o Lobo que, no Brasil, é o que conhecemos por lince e ao qual os antigos atribuíam a propriedade de ver através das paredes. Isso fortalece a minha expectativa de que Craveirinha estivesse falando dos raios-x conseguidos em laboratório. Porque a ciência precisa ver, enquanto a igreja, a fé, nada questionam. Se há ossos dentro nós, foi porque Deus os colocou lá. Se quisesse que os víssemos teria os colocado do lado de fora. Os “pequenos esqueletos” (e aí, eu poderia entender também as pessoas magras, famintas) juntam as mãos para rezar na igreja, enquanto, no laboratório, os lobos concentram o cobalto, ambos em busca de respostas.

SUELTO
No laboratório
O lobo dirige a radioactividade
e concentra o cobalto

Na igreja
Pequenos esqueletos juntam
No catecismo os metacarpos
E rezam

Finalizo minha análise com o poema Ninguém, o qual tem como verso final o seguinte: - Ninguém (caiu). Só dois pretos. Essa foi a forma de Craveirinha representar o preconceito que “seu povo” sofria. Se os “pretos” são ninguém só podemos ser levados a crer que os “brancos” são alguém, mas Craveirinha parece chamar atenção a isso para demonstrar, antes de tudo indignação, mas principalmente que esse é um ponto de vista dos brancos, pois quem diz que ninguém morreu (apenas dois pretos) é o empreiteiro da obra. E provavelmente, o transeunte curioso também seja.
Craveirinha parece utilizar o contexto de uma construção pra mostrar que o preconceito que o autor sente ou observa se dá justamente onde quem realiza o obra é o ninguém. Todo esse poema, assim como muito outros deste mesmo autor, podem ser facilmente imaginados depois de (ou enquanto) lidos.

NINGUÉM
Andaimes
Até o décimo quinto andar
Do moderno edifício do betão armado

O ritmo
Florestal dos ferros erguidos
Arquitetonicamente no ar
E um transeunte curioso
Que pergunta:
- Já caiu alguém dos andaimes?

O pausado ronronar
Dos motores a óleos pesados
E a tranqüila resposta do senhor empreiteiro:
- Ninguém. Só dois pretos.

José Craveirinha reivindica da maneira mais bonita que pode haver; através da poesia, onde se nota a todo instante que ele busca a preservação de seu universo cultural, invadido pelo colonizador. É essa a forma de ele denunciar o preconceito da raça e as desigualdades sociais impostas pelo colonialismo.
Outro aspecto interessante que notei na obra dele é que cada poema parece ter uma idéia completa, acabada. É como se conseguisse concluir poesias, é como se não houvesse o que acrescentar. Talvez isso aconteça porque a maioria dos poemas, no final, cause um impacto no leitor, em especial este último. Ler Craveirinha é conhecer Moçambique de Norte a Sul, isto é, conhecer as várias faces de seu país.

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