GALVEZ IMPERADOR DO ACRE:
UMA SUBVERSÃO DA HISTORIOGRAFIA
Resumo:
Este artigo pretende mostrar a intertextualidade contida na obra de Márcio Souza – Galvez Imperador do Acre –, com o intuito de fazer perceber toda inversão do discurso histórico, bem como a sua carnavalização. Galvez Imperador do Acre é um livro que promove no leitor uma desacomodação diante do discurso aceito/oficial. A história do Acre é, sim, parodiada, mas com o intuito de fazer o leitor refletir sobre o que é, de fato, um discurso oficial e até que ponto ele é imparcial. Para perceber a paródia, o leitor deve conhecer dados, pelo menos alguns, sobre a História oficial do Acre e conhecer também os intertextos contidos na obra, explicita ou implicitamente – sejam eles de caráter historiográfico ou estético – a fim de perceber toda ironia desse romance histórico.
Para introduzir este artigo, faremos uma síntese da obra: O contexto político/social em que o romance está inserido é o da região amazônica no final do século XIX. Temos como figura central da história, Galvez, um espanhol que se diz aventureiro e que pretende tornar o Acre um Estado independente para, mais tarde, anexá-lo ao Brasil. Seu exército é descrito como sendo formado por poetas, loucos, prostitutas, seringueiros desdentados, etc Ainda assim, seu exercito vence o boliviano e Galvez é Coroado Imperador do Acre – Imperador por sua própria decisão. Mas o reinado de Galvez dura pouco, pois ele sofre um golpe de Estado e é deposto.
Como podemos perceber com a leitura do romance, o autor faz uma subversão do discurso historiográfico acreano, ele o parodia . Para isso, incorpora em sua narrativa certos eventos e personagens da história, a fim de conferir uma maior veracidade a sua história. No entanto, sem o intuito de fazer o leitor acreditar no que lê como se fosse uma verdade acabada e, sim, com o intuito de fazer do leitor um questionador quanto ao que vê parodiado e, conseqüentemente, do que lhe é imposto como História. Esta é uma importante característica da literatura contemporânea: a historia é (re)contada de modo diferente dos historiadores, fazendo com que haja uma subversão de um fato que já foi contado anteriormente.
Ainda que pareçamos estar diante de um discurso historiográfico – pois o autor compõe o romance, incorporando a História nos contextos político, cultural e social daquela época – o que temos é uma paródia cômica da história brasileira, uma reinterpretação dos dados da História oficial.
Se podemos pensar que a história contada por Souza não é verdadeira, porque ousamos afirmar que o que consta nos livros dos historiadores é a representação da mais pura verdade? Tanto no romance quanto na historiografia podem haver distorções, exageros, supressão de fatos, etc. Se pensarmos assim, então o discurso historiográfico aceito não pode ser considerado “mais verdadeiro” que o de Souza. É claro que Souza satiriza toda a narrativa, exagerando nos acontecimentos, mas é justamente por esse motivo que a paródia dele é eficaz: é por isso que ela desacomoda o leitor.
Apesar de sabermos e entendermos que, a partir desta obra, podemos analisar vários aspectos da literatura, com, por exemplo, a desmistificação da história, nos ateremos mais especificamente a um recurso utilizado por Souza que permeia toda a obra: a intertextualidade, ou, melhor, a ironia intertextual. Primeiramente, nos referiremos à história cultural, à história da arte e, em seguida, ao discurso-base desta paródia que é o historiográfico. Em Galvez, a intertextualidade está presente desde os títulos de vários subcapítulos da obra até os dados implícitos contidos nas falas das personagens e nas entrelinhas da fala do narrador/editor.
Conforme Carlos Alexandre Baumgarten (2000), em Novo romance histórico brasileiro, a intertextualidade da obra manifesta-se através do recurso da citatividade. “Nessa medida, os capítulos Commemorazzione Verdiana, Ainda Giuseppe, Radamés, Luar sobre o Nilo, A Cripta, Dueto Final e Dueto Bufo (p. 54-58) constituem uma seqüência que se organiza a partir da incorporação e citação literal de passagens da ópera Aída, de Verdi.” e todos esses subcapitulos constituem uma seqüência que dialoga com a trama.
Sobre a incorporação da ópera de Giuseppe Verdi, temos que é encenada enquanto se trava uma perseguição a Galvez. Podemos ver nos subcapitulos Binóculo I, II e III (p. 68 - 70) algo que vai de encontro ao que se espera do comportamento dos espectadores dessa ópera. O que lemos não é uma platéia atenta e comovida com a história de Aida e Radamés, mas um coronel agarrando uma professora, o governador dormindo em seu camarote e D. Irene agarrando Galvez no banheiro. A ópera italiana serviu de cenário para que os novos-ricos exercitassem sua fidalguia, mas, na verdade, não eles compreendiam nem se interessavam por tal arte.
Segundo Cavalcante (2003), com isto, “o escritor constrói um dos momentos mais interessantes da mescla de culturas, isto, sobretudo, pela maestria que cria a seqüência dos acontecimentos e o entrecruzar de trechos de textos estrangeiros”. Ainda, temos dois subcapitulos que parecem filosofias, conclusões do personagem que refletem sobre aquela sociedade que enriquecia graças ao extrativismo:
Máxima da ostentação –
Aprendi que o novo-rico
só é desagradável porque
amplia os detalhes das miséria.
(SOUZA. p. 35)
Máxima –
Certamente a miséria
também é imperialista
(SOUZA.p. 47)
Ainda sobre a ópera de Verdi, temos Variante Verdiana (p. 72): “A orquestra havia cessado entre guinchos e instrumentos amassados. Uma confusão faraônica, se o leitor me permitir a licença poética.” Aqui, temos um discurso decorrente do próprio intertexto – que é a ópera Aida, pois a trama de Mariette se dá às margens do rio Nilo, no tempo dos faraós.
Outro exemplo a ser citado é o episódio em que Galvez, logo depois de salvar Trucco de um ataque, vai até o cabaré Flora e Juno, onde, durante o diálogo com duas cocottes, temos de fundo Tritsch-Tratsch Polka, de Strauss. A ironia da cena tem como ponto culminante a fala da cocotte, ao fim do diálogo: “Estou com uma coceira no bibiu” (p. 21)
Como sabemos, a obra possui dois narradores: um é o narrador-personagem Galvez e o outro é o narrador-editor. Logo no início da leitura, no momento em que o narrador justifica o porquê da publicação das memórias encontradas num sebo, já temos o primeiro indício de intertextualidade. O narrador cita que se inspirou em Guerra dos Mascates, pois, assim como no romance de José de Alencar, as informações chegam até às mãos do narrador por puro acaso. Assim, Guerra dos Mascates trata da rebelião colonial pernambucana, ao passo que, as memórias encontradas pelo narrador-editor em Galvez se tratavam da disputa pelas terras do Acre.
A abertura da segunda parte do livro é um trecho de La vida es sueño , de Calderón de La Barca. Esta peça, do barroco espanhol é trazida justamente no momento em que Galvez, depois de escapar de Belém, está cativo no barco a vapor em pleno rio Amazonas, o que chama de Masmorra Flutuante. Em seguida, Galvez se tornaria Rei, para logo deixar de sê-lo. Além de Calderón de La Barca, em outros momentos, o romance se apropria de escritos de Cervantes e Lope de Vega, dando assim continuidade ao diálogo com a tradição ibérica.
Em Zarzuela (p.102), como o próprio nome já diz, temos a ópera cômica, em que o cozinheiro, o imediato e o taifeiro formam a nova orquestra, pois com a confusão e a prisão em Belém, a Companhia francesa havia perdido vários integrantes. Na peça de Moliére, Les précieuses ridicules –, temos um quadro bastante parecido, no qual os criados têm de se vestir de nobres.
O subcapitulo em que Galvez decide que caminho seguir; se procurar indícios de extraterrestres com Sir Henry ou liderar o movimento de independência do Acre, chama-se Descartes, conhecido por seguir a filosofia racionalista. Dessa forma, o personagem decide por transformar o Acre em um Estado Independente. No subcapitulo intitulado A República de Platão (p. 138), Galvez começa a pensar sobre que tipo de governo seria o seu. O título nos remete ao discurso socrático de Platão, A República. Também cita o Estado de Thomas Hobbes (aqui poderia estar se referindo a obra o Leviatã – Soberano) e também Utopia, de Thomas Morus. Mas acaba optando pela monarquia, que é, segundo ele, “pomposa, colorida e animada, como uma festa folclórica.” (p. 139).
Partindo da leitura e da pesquisa de vários subcapitulos da obra, fica-nos fácil perceber a intenção do autor contida na retomada de discursos de religiosos, filósofos, músicos, pintores e escritores, tanto espanhóis quanto franceses ou italianos. Essa intenção era mesmo a de suscitar o processo de carnavalização, esta designação foi proposta, segundo Angélica Soares (2006), por M. Bakhtin como processo de inversão de valores sociais, subversão cultural, atitude de dessacralização, ou seja, de uma representação do mundo às avessas.
Ao longo da leitura da obra, não podemos deixar de perceber que há também uma série de gêneros do discurso incorporados ao romance, dentre eles: Ata; Ordem de serviço; Receita médica; textos informativos e científicos, etc. Esses gêneros discursivos, somados aos intertextos contidos na obra, convergem para a paródia maior que é feita do discurso historiográfico.
Esta paródia que chamamos de paródia maior é feita a partir de um único discurso, que é o dos historiadores, mas, para construí-la, o autor engloba diversos outros textos e discursos, de forma a fazer com que o texto dialogue não só com o leitor – ao desacomodá-lo diante da desconstrução de algo que lhe foi imposto com verdade – mas também com outros discursos, agora, sim, da cultura e da arte, de outras épocas e estilos.
Segundo Umberto Eco (2003), se o leitor não é capaz de perceber a citação intertextual, ele é excluído da compreensão do texto, pois, neste caso, a pretensão do escritor do romance é justamente a de fazer o leitor perceber que há uma inversão daquilo que se convencionou chamar de verdade histórica. Se o leitor não capta isto, não percebe a ironia e pode acabar pensando se tratar de um discurso historiográfico. “O texto pode ser lido de modo ingênuo, sem colher as remissões textuais, ou pode ser lido com plena consciência destas remissões ou pelo menos com a persuasão de que é preciso procurá-las.” (Eco:2003)
Sabemos, então, que a ironia intertextual privilegia o leitor intertextualmente avisado, pois este não só consegue captar como também saborear a ironia, e, a isto, Eco chama de piscadela culta do autor. Em que consiste a ironia, senão em contrariar aquilo que se presume que seja “verdade” para o leitor? E nesse ponto, a ironia pode ou não ser entendida, dependerá do conhecimento do leitor.
“A menos que se vá em busca de plágios ou ecos intertextuais inconscientes de hábito, a leitura como caça à citação coloca-se como relação de desafio entre o leitor e um texto, que solicita de alguma maneira a descoberta de seu segredo dialógico.” (ECO; 2003)
Por fim, acreditamos que o romance de Souza tenha sido construído não só para desacomodar o leitor de seu papel de aceitador do discurso oficial, mas, acima disso, para jogar com o leitor e ver até onde ele é capaz de decifrar o jogo intertextual e que sentido ele confere a narrativa. Narrativa essa que procura mostrar do início ao fim como a aquela sociedade buscava se construir – construir sua identidade – devorando a cultura ocidental, e é esta deixa que Souza aproveita para fazer toda a paródia, toda inversão, no tom irônico que faz o leitor ir contra suas próprias considerações de verdade.
Bibliografia:
BAUMGARTEN, C. A. . O novo romance histórico brasileiro. Via Atlântica (USP), São Paulo - Brasil, v. 4, p. 168-176, 2000.
CAVALCANTE, Maria de Nazaré. Mestrado em Curso de Pós-Graduação em Literatura. Universidade Federal de Santa Catarina, UFSC, Brasil. Título: Dom Galvez Na Comarca de Amazônia, Ano de Obtenção: 2003.
ECO, Umberto. Sobre a Literatura. Rio de Janeiro; Record. 2003. trad Eliana Aguiar.
Enciclopédia Britânica do Brasil. Atlas Histórico. 1995.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de narratologia. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2000
SOARES, A. M. S. . Gêneros Literários. 6. ed. São Paulo: Ática, 2006. v. 01. 85 p.